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“Ele não está mais aqui”

“Ele não está mais aqui”
Enquanto olhava fixamente para o homem que jazia sem vida, uma inexorável sensação tomava conta de sua alma. Um vazio sem precedentes de uma dor inenarrável.
A família esforçava por ampará-la prevendo todos que logo ela não poderia mais suportar e imaginavam que em algum momento ela deveria ser medicada, assim a seguravam de modo que seus pezinhos miúdos mal tocavam o chão.
Ela é uma figura tão franzina, tão branquinha, tão pequena... que ao vê-la temos a impressão de que um único sopro seria necessário para quebrá-la com a facilidade que se quebra um cristal . Seus olhos são de um azul tão puro, tão suave, que sugerem a doçura e a transparência de sua alma. E suas mãozinhas! Tão enrugadas e macias, teimavam em prender-se a quaisquer pares de mãos alheias independentes de quem fossem os donos. Apenas queria agüentar firme e possibilitar ao seu amado uma despedida digna de um homem que em tudo foi sempre um vencedor.
Olhava ternamente para o caixão que comportava o corpo daquele ao qual amou por 66 anos. Uma vida inteira juntos! Pensava nos oito filhos, nos netos e bisnetos e em todos os planos que puderam realizar e nos que se perderam em meio às incoerências da vida. Lembrou do terno que ele ganhou de um amigo francês e que tentou diligentemente vender por considerá-lo demasiadamente elegante e que, de certo, não encontraria ocasião propícia para usá-lo. Que ironia! Seu precioso terno serviu de honraria para o último adeus a um ser humano apaixonado pela vida.
As pessoas não entendiam sua suportabilidade. Não compreendiam como ainda mantinha-se de pé diante de uma perda tão grande. Não obstante seu controle aparente, ninguém tinha acesso ao deserto encravado em seu coração. Era um misto de dor e revolta por uma doença maldita que não respeitou sua dependência completa daquele amor e o levou pra longe de si e de sua afetuosa companhia.
Nunca foi uma esposa como as outras. Não sabia ler, nem tão pouco escrever. Não sabia fazer compras e nem se vestir sem o importante veredicto do amigo. Não sabia como iria preencher suas tardes regadas por pequenas risadinhas cheias de segredos no sofá enquanto lembravam as travessuras dos filhos e netos. Lembranças de que a sutileza da vida se revela sempre e muito mais na simplicidade.
Depois de duas semanas daquele fatídico dia, voltou para casa. Não adiantava se esconder ou fugir: Por onde quer que fosse a ausência dele deixava marcas indeléveis em seu coração. Passou uma noite tenebrosa, pois desejava sua presença, sentia seu cheiro, ansiava por ouvir o ruído tão peculiar da respiração dele dormindo ao seu lado. Tudo virou saudades...
Levantou-se com alguma dificuldade. Com oitenta anos e ainda precisa cuidar dos afazeres. É uma forma de se manter viva. Caminhou até a cozinha, sentiu fome, fez café e num gesto instintivo olhou para a mesa esperando encontrar os pães que durante os sessenta e seis anos de casamento o marido adquirira o hábito de comprar.
Ele soltou um grito gutural. Gritou e chorou. Desabou no chão e não tinha ninguém para impedir sua queda. Chorou, grunhiu, uivou, soluçou e por fim se deu conta de que o desespero não era pela fome que sentia, mas era porque o homem que lhe comprava o pão por sessenta e seis anos tinha ido embora...

Postado e escrito por Elaine Locatelli

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